Para participar como atleta nas competições organizadas pela Associação de Futebol Popular de Barcelos (AFPB) é necessário ser natural ou residir numa das freguesias do Município de Barcelos. A AFPB dispõe de um sistema de inscrições relativamente sofisticado que supostamente salvaguarda este requisito. O processo é realizado, salvo raras exceções, totalmente online com o recurso ao cartão de cidadão. Através de uma plataforma web e um executável auxiliar, as informações do atleta, como nome, data de nascimento e morada, são obtidas do cartão de cidadão, que deve ser inserido num leitor de cartões smartcard genérico. Este processo agiliza muito as inscrições e diminui a probabilidade de ocorrência de erros, minimizando o trabalho repetitivo manual.
No entanto, um sistema mais sofisticado não está imune a abusos. Da mesma forma que antigamente os clubes contornavam os atestados de residência na freguesia, também hoje as regras são contornadas, apenas muda o esquema que é feito de uma forma mais sofisticada.
Como funciona o esquema?
Nos dias ou semanas que antecedem a inscrição, o clube ou o atleta acede ao portal do Governo gov.pt, autentica-se com o leitor de cartões ou chave móvel digital, e solicita a alteração da morada no cartão de cidadão. É importante escolher uma morada real dentro do Município de Barcelos, pois será enviada uma carta para confirmar que o indivíduo tem de facto acesso a essa morada. A alteração só é concluída com sucesso após a verificação da morada, que deve ser feita introduzindo o código recebido por correio na página de confirmação, também no portal gov.pt.
Normalmente, a morada escolhida é a mesma de algum dirigente ou membro da direção do clube que ajuda a completar este processo. Mais tarde, na altura da inscrição, quando o cartão de cidadão é inserido no leitor de cartões e o software da AFPB pergunta ao governo: "Qual é a morada deste cidadão?", o governo responde com a morada que acabou de ser alterada. Isso faz com que a validação do lado da AFPB seja concluída, sem que haja forma de saber se o atleta reside de facto naquela habitação. Dias mais tarde, depois de confirmada a inscrição, é só repetir o mesmo processo ao contrário para voltar a ter a morada original no cartão de cidadão.
Este malabarismo não é de todo legal, a morada no cartão de cidadão tem de corresponder ao local de residência habitual, e em caso de mudança esta alteração tem de ser feita em 60 dias. Mudar uns dias a fazer de conta só para passar na inscrição de um campeonato de futebol amador em Barcelos não é uma exceção prevista na Lei n.º 32/2017. Mas como sempre, existem peixes maiores para apanhar, então é mais um clássico caso português de: "é proibido mas pode-se fazer".
Qual a razão da regra?
Não se sabe exatamente qual o motivo original que levou à implementação desta regra, mas é muito fácil de entender a razão para ela não deve desaparecer agora. Deixando de parte a ideologia para já, e olhando apenas para números concretos, neste momento dizer que a Câmara Municipal de Barcelos financia de forma significativa a AFPB é um eufemismo. A Câmara Municipal de Barcelos é responsável por 73% dos 163 mil euros anuais que a AFPB precisou para organizar a época passada. Foram cerca de 119 mil euros (fonte) de financiamento direto. Ou seja, depois do valor das inscrições e de toda a receita com multas, por cada 3€ gastos na organização das competições, mais de 2€ vêm da Câmara.
É prudente afirmar que, sem a Câmara Municipal de Barcelos, não há Futebol Popular. Posto isto, só faz sentido haver esta restrição, e talvez até mais, uma vez que o Popular é praticamente um programa cultural da Câmara com algumas esmolas de quem participa nele. E o dinheiro que a Câmara envia neste financiamento direto não cresce nas árvores, vem dos impostos e taxas cobradas aos habitantes de Barcelos, não aos de Esposende ou Braga. A percentagem de fundos alocada a Barcelos pelo governo central é também calculada com base na população residente. Por isso, quando um atleta não residente participa no Futebol Popular, está a consumir recursos financeiros que não foram destinados a ele. Por outras palavras, Barcelos e os seus habitantes estão a financiar a prática de desporto dos residentes de municípios vizinhos.
Há ainda toda a questão ideológica de que o Futebol Popular de Barcelos deve ser disputado apenas e só por Barcelenses, ou até apenas pelos próprios habitantes da freguesia, como alguns mais puristas afirmam, e de resto como já foi em tempos. Mas uma coisa é certa: voltar ao sistema antigo é acabar com talvez mais de metade dos clubes. Enquanto uma freguesia como Arcozelo podia ter três clubes e mesmo assim ter menos clubes por habitante que a segunda maior freguesia com apenas um. É justo reconhecer que alguma da essência do Futebol Popular se perdeu, no entanto, os tempos mudaram, e o Futebol Popular de Barcelos deve muito do seu sucesso, qualidade e tamanho atual devido ao levantamento desta restrição.
O que pode ser feito?
A AFPB tem duas escolhas, e nenhuma delas é continuar como as coisas estão agora:
- Pode apertar a fiscalização e garantir que a regra é cumprida honrando o seu regulamento de provas;
- Ou pode abrir as portas aos de fora com um sistema de quotas e partilha de custos.
A AFPB pode apertar a fiscalização e aplicar sanções, pois os regulamentos estão do seu lado. A regra diz que os atletas têm de ser naturais ou residentes em Barcelos para competir, não diz que apenas têm de ter a morada no cartão de cidadão em Barcelos no momento exato da inscrição. É da responsabilidade da AFPB encontrar processos que garantam o cumprimento das suas regras, e não arranjar desculpas para a falta de fiscalização das mesmas. Podem perfeitamente realizar verificações extraordinárias de moradas a atletas durante toda a época desportiva, aleatoriamente e/ou mediante denúncia. O que não deve fazer é continuar a ignorar o problema quando toda a gente sabe que existe, pois acaba só por criar conflitos e diminuir a confiança que os clubes depositam na direção da AFPB.
Se não os podes vencer, junta-te a eles. A AFPB pode optar sempre pela "legalização" deste tipo de atleta e, ao mesmo tempo, tentar preservar alguma da essência do Futebol Popular limitando a quantidade com quotas. Quotas essas que poderiam ou não ter em conta a proximidade de uma freguesia aos limites do Município e a sua população de forma a garantir igualdade e coesão territorial. No fim da época 3% dos atletas do Popular eram de Póvoa de Varzim? Então a Câmara da Póvoa contribui com 3% dos apoios financeiros da época seguinte, atualmente estamos a pagar para os outros poderem praticar desporto. Seria uma grande decisão que teria de ser discutida e refinada entre todos os clubes, direção e Câmara Municipal de Barcelos, que nesta altura do campeonato mais do que merece um lugar à mesa das negociações.
Conclusão
Escrevemos este artigo porque acreditamos que as coisas não devem continuar como estão, nem acreditamos em segurança por ofuscação. Se há clubes que estão a conseguir contornar as regras e as validações automáticas sem consequências, então todos merecem saber como fazer para que tenham as mesmas oportunidades. É uma questão de justiça.
Relativamente às propostas aqui apresentadas, é preciso reconhecer que existem argumentos válidos de ambos os lados. Por um lado, tenta-se preservar a essência do que é o Futebol Popular de Barcelos, o inter-freguesias, essência essa que muitos consideram meio que desvirtuada desde o levantamento do requisito de residir na mesma freguesia que o clube. Por outro, é preciso tentar combater a desertificação de freguesias mais pequenas e garantir a representatividade de todo o concelho, e não apenas da cidade e das freguesias maiores, o que acaba também por fazer parte da essência do Futebol Popular.
Como as coisas estão é que não devam continuar, porque não se alinham com nenhum dos dois argumentos. Por um lado, há clubes a inscreverem múltiplos jogadores de fora do Município de qualquer das formas, seja permitido ou não, estando-se completamente a borrifar para a ideologia. Por outro, há clubes que se calhar hoje poderiam estar a competir se tivessem a opção legal de inscrever alguns jogadores de fora para colmatar uma falta genuína de atletas, e não para tentarem “contratar” mais um ou outro craque assalariado enquanto dispensam jovens da terra para dar espaço.