Em 2021 o público regressou às bancadas, e para além de evidente o distanciamento social, houve uma outra característica que pode ter chamado à atenção dos mais atentos. Novas divisórias e secções separadas dos restantes adeptos. São as chamadas zonas com condições especiais de acesso e permanência de adeptos, onde só podem entrar pessoas portadoras do Cartão do Adepto.
Mas o que é o cartão do adepto? Muito resumidamente, é um cartão cujo objetivo é identificar o portador. Faz parte de um conjunto de medidas propostas pelo Decreto Lei n.º 113/2019 para combater o racismo, xenofobia e intolerância nos espetáculos desportivos.
A intenção é tão boa, como é que isto pode ser algo mau para o futebol ou os seus adeptos? Pois, a intenção das golas antifumo também era boa não fossem elas serem inflamáveis. E ainda que estas sejam duas situações completamente diferentes, aparenta ter-se passado algo parecido: Foi identificado um problema existente, e bem. Mas tentou-se arranjar uma solução à pressa sem consultar pessoal especialista no assunto, ao mesmo tempo que se tenta arranjar uns trocos para o amigo ou familiar. O resultado é uma medida completamente descabida que não serve o seu propósito, mas serve para arrecadar mais uns euros sabe-se lá para quem.
O Cartão do Adepto tem um custo de 20€ a cada 3 anos para atingir o mesmo objetivo que o Cartão de Cidadão já atinge, identificar uma pessoa. E este já custa 16€ a cada 5. O Cartão do Adepto tem quase metade da validade de um Cartão de Cidadão e custa mais para renovar. As pessoas vão pagar para renovar um cartão do adepto com as mesmas informações do anterior porque entretanto o seu cartão de cidadão ainda não expirou. E por isso informações críticas como fotografia ainda não sofreram alterações. É pagar uma renovação só porque sim.
Se o objetivo fosse realmente identificar eventuais prevaricadores, tornava-se obrigatório o porte de um documento identificativo oficial e válido. A toda a gente dentro do estádio, e não só um grupo de adeptos encostados a um canto qualquer dentro de uma jaula. Associava-se o bilhete a um documento de identificação, como a UEFA faz na Liga dos Campeões, por exemplo. Porque se eu sou mal intencionado, e vou com a intenção de causar desacatos, simplesmente não vou para a zona do cartão do adepto para não ser identificado. Provavelmente até vou ver melhor o jogo sem uma rede ou um vidro à frente.
Mesmo que o argumento a favor seja de que, obrigar toda a gente a levar cartão de cidadão não seria prático para o adepto pacífico que só quer ir ver o jogo. Nesse caso façam a zona do cartão de cidadão. Têm na mesma um grupo de adeptos identificados, só não tem é de se pagar mais por isso.
Para além dos argumentos sobre a burocracia e custos adicionais completamente desnecessários, há ainda uma questão relativa à segurança. Todas estas divisórias improvisadas que separam até adeptos do mesmo clube, são alterações à planta de evacuação dos estádios, que não foram equacionadas aquando da sua construção. Será que os clubes tiveram isso em conta quando as instalaram?
Por exemplo, na Bancada Nascente do Estádio Cidade de Barcelos existiam 2 grandes saídas de emergência para 5 setores contíguos. Agora 1 saída de emergência está alocada ao setor do Cartão do Adepto e a outra está alocada aos restantes 4 setores sem Cartão do Adepto. Uma saída terá de lidar com 4 vezes mais pessoas que a outra, enquanto que antes os adeptos eram repartidos em igual número pelas duas. De certeza que quem está na zona do adepto vai sair com facilidade, mas será que os outros fora dela vão ter a mesma sorte? E atenção que o estádio é novo, foi construído em 2004, obedece aos mais altos padrões e tem a categoria mais alta dada pela Liga de Futebol Profissional.
Então será que é o Gil Vicente que tem culpa da distribuição? Eu diria que não, o que é que eles iam fazer? Dedicar metade da bancada a um sistema que é repudiado por quase todos e perder automaticamente metade da receita daquela bancada? O jogo Gil - Benfica estava esgotado na zona normal e mesmo assim não houve quem quisesse ir para a zona do adepto. Ficaram vazias, tanto a do Gil como a do Benfica. Claro que os clubes vão querer minimizar ao máximo o número de lugares dedicados a uma demografia a quem não consegue vender bilhetes.
Legenda: Zona Cartão do Adepto completamente vazia no Estádio Cidade de Barcelos
E isto é num estádio relativamente novo, como será noutros mais antigos, onde antes destas divisórias já era difícil escoar tráfego pelas portas e passagens estreitas? Vai ser preciso acontecer uma tragédia para pensarem no assunto? Depois já se sabe que a culpa morre solteira. Caso aconteça alguma coisa a culpa será de quem inventa estas medidas completamente desenquadradas da realidade, que derivam para longe do objetivo, e cujas consequências não são sequer tidas em conta quando as aprovam.
Por todas estas razões, o Cartão do Adepto é uma aberração. É uma aberração para o utilizador, o adepto, que tem custos acrescidos e é exposto a burocracia desnecessária. É uma aberração para os clubes que têm de restringir o número de pessoas a quem podem eventualmente vender um bilhete. É uma aberração para os estádios porque se fazem divisórias inúteis que não só são esteticamente feias, mas pioram a visibilidade e ainda podem também comprometer a evacuação em caso de emergência. É uma aberração para o espetáculo porque mesmo com casa cheia, as zonas do cartão do adepto vão estar vazias. Mas mais importante de todas, é uma aberração porque não resolve nenhum problema e só cria ainda mais.
Porque não é colocando 5% das pessoas do estádio dentro de uma jaula com um cartão de plástico no bolso que se vai resolver o problema do racismo e da violência no futebol.
E francamente assusta que ninguém, durante todo o processo de discussão e aprovação da lei, tenha sequer pensado nisso.
Felizmente parece que esta medida não foi bem aceite pelo público. Já com algumas jornadas jogadas, regra geral todos rejeitaram esta medida ao não ocupar as ditas zonas. Alguns até lutam ativamente contra, exibindo tarjas e entoando cânticos. Cânticos e tarjas essas que valem multas aos clubes desses adeptos, mesmo que o conteúdo não seja difamatório. Ou seja, está-se a punir um grupo de pessoas que têm uma opinião diferente de quem está no poder. 1974 já foi há 47 anos…
Legenda: Zona Cartão do Adepto em Moreira, Porto, Guimarães e Alvalade
Se ainda assim não estás contra o cartão, está também prevista na lei a possibilidade de ser exigido o cartão em jogos considerados de risco elevado, em todo o estádio e não só nas zonas delimitadas. Queres ver um Porto-Benfica, um Vitória de Guimarães - Braga ou um Sporting - Porto no estádio? Tens de fazer o cartão. E sabes como é que se pede o Cartão do Adepto? Com o Cartão de Cidadão, por isso é esquecer vender bilhetes a turistas, por exemplo. Mesmo que pudessem, nenhum turista vai pagar 20€ para fazer um cartão, esperar 10 dias úteis para o receber sabe-se lá onde, só para ver 1 jogo na sua estadia de 7 dias em Portugal. É que não faz sentido nenhum.
Neste país os governantes pensam que os problemas todos se resolvem aplicando taxas e taxinhas em tudo o que mexe. Por isso é que não podemos andar em estradas boas, que nem sequer foram pagas por nós, sem pagar uma taxa. Por isso é que mais de metade do preço do combustível é taxas. Por isso é que o mesmo carro novo é pelo menos 25% mais barato em Espanha. Portugal deve ser dos poucos países no mundo que aplica imposto sobre imposto. Cobra-se IVA sobre ISV, por exemplo, e este cartão do adepto é o mais recente capítulo desta novela. Já somos obrigados a pagar pelo cartão de cidadão, mas agora querem nos obrigar a pagar um novo cartão que é basicamente uma fotocópia do de cidadão que custa 20€.
E atenção que isto não é um ataque político ao partido no poder. Por exemplo, a lei das Sociedades Anónimas Desportivas, outro desastre para o Futebol Português, até foi aprovada na altura em que o PSD estava no poder. Convicções políticas de parte, isto transcende partidos, é um problema cultural. Em Portugal dá-se mais valor ser uma pessoa de confiança do que ser a pessoa mais qualificada para o trabalho. E isso impede que sejam as pessoas mais qualificadas a ocupar os cargos para os quais são mais aptas. Em vez disso, estão lá as de confiança do chefe que não percebem do assunto, não ouvem os especialistas e produzem legislação como esta.
Se não forem os adeptos a reprimirem esta lei mais ninguém vai. A Liga Portugal e os Clubes querem agradar o executivo para que possam ser permitidos adeptos nos jogos neste contexto pós pandémico. Para alem disso estão a tentar obter do Governo uma redução no IVA para os espetáculos desportivos, pelo que é certo que não será a Liga nem os clubes a fazerem pressão para acabar com esta aberração.
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